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Outra geografia. I. A torre de Babel: entre a maquiagem e o closet.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.
http://brasil.indymedia.org/pt/blue/2003/04/252700.shtml

I.- Século XXI.

O novo século repete lá em cima a vocação de seu predecessor: as propostas políticas se fundamentam na dominação ou na exclusão do outro. O que há de novo? Como antes, hoje se recorre à guerra, à mentira, à farsa, à morte. O poder repete a história e trata de nos convencer de que, agora sim, vai preencher as páginas com uma letra boa.

O projeto de mundo do neoliberalismo nada mais é a não ser uma reedição da torre de Babel. De acordo com o relato do Gênesis, os homens, empenhados em chegar às alturas, concordam quanto a um projeto fora do comum: construir uma torre alta que alcance o céu. O deus dos cristãos castiga sua soberba com a diversidade. Falando línguas diferentes, os homens não podem levar adiante a construção e se dispersam.

O neoliberalismo tenta a mesma edificação, mas não para alcançar um céu improvável e sim para livrar-se de vez da diversidade, aquela que ele considera ser uma maldição, e para garantir ao poder que ele nunca deixe de sê-lo. O anseio de eternidade surge nos albores da história escrita com aqueles que são poder.

Mas a torre de Babel neoliberal não é empreendida só no sentido de conseguir a homogeneidade necessária para a construção. A igualdade que destrói a heterogeneidade é igualdade a um modelo. "Sejamos iguais a isso", nos diz a nova religião do dinheiro. Os homens não se parecem a si mesmos, nem uns aos outros, e sim a um esquema que é imposto por quem hegemoniza, quem manda, quem está na parte de cima desta torre que é o mundo moderno. Lá em baixo estão todos os diferentes. E a única igualdade que existe nos andares inferiores é a de renunciar a ser diferente ou optar por sê-lo de forma envergonhada.

O novo deus do dinheiro repete a maldição das origens, só que às avessas: ou seja, condenando o diferente, o outro. No papel de inferno: a prisão e o cemitério. O boom dos lucros das grandes empresas transnacionais é acompanhado pela proliferação dos presídios e dos túmulos.

Na nova torre de Babel, a tarefa comum é um pacto com quem manda. E quem manda faz isso só porque supre a falta de razão com excesso de força. A ordem é para que todas as cores se maquiem e mostrem o brilho da cor do dinheiro, ou que vistam sua variedade de cores só na escuridão da vergonha. A maquiagem ou o closet. O mesmo vale para homossexuais, lésbicas, migrantes, muçulmanos, indígenas, pessoas "de cor", homens, mulheres, jovens, anciãos, inválidos e todos os nomes que os outros assumem em qualquer lugar do mundo.

Este é o projeto da globalização: fazer do planeta uma nova torre de Babel. Em todos os sentidos. Homogênea em sua forma de pensar, em sua cultura, em seu patrono. Hegemonizada não por quem tem a razão, mas sim a força.

Se na torre de Babel da pré-história da humanidade era possível pela palavra comum (o mesmo idioma), na história neoliberal o consenso se obtém pelo argumento da força, das ameaças, das arbitrariedades, da guerra.

Como viver no mundo é fazer isso em proximidade com o diferente, as opções que temos são entre ser dominante ou dominado. Para o primeiro a quota está preenchida e a sucessão é hereditária. Ao contrário, para ser dominado há sempre lugares livres e o único requisito é renegar a diferença ou escondê-la.

Mas há diferentes que se negam a deixar de sê-lo. Para aqueles que vivem na torre e não estão na parte mais alta, existem formas de enfrentar os que "não se adaptam": a condenação ou a indiferença, o cinismo ou a hipocrisia. Nas leis da torre neoliberal, a possibilidade de reconhecer a diferença é punida. O único caminho permitido é a submissão desta diferença.

Na época moderna, o Estado nacional é um castelo de cartas diante do vento neoliberal. As classes políticas neoliberais brincam de serem soberanas na forma e na altura da construção, mas já faz tempo que o poder econômico deixou de estar interessado nesta brincadeira e deixa que os políticos locais e seus seguidores se divirtam... com um baralho que não lhes pertence. Afinal, a construção que interessa é a da nova torre de Babel, e enquanto não faltam matérias-primas para sua construção (ou seja, territórios destruídos e repovoados com a morte), os capatazes e os representantes das políticas nacionais podem continuar com o espetáculo (com certeza, o mais caro do mundo e o de menor participação).

Na nova torre, a arquitetura é a guerra ao diferente, as pedras são os nossos ossos e a argamassa é o nosso sangue. O grande assassino se esconde atrás do grande arquiteto (que se não se autodenomina "Deus" é por não querer pecar por falsa modéstia).

No relato bíblico, o deus cristão castiga a soberba dos homens com a diversidade. Na moderna história do poder, deus nada mais é a não ser o agente de relações públicas da guerra (que só pode se chamar moderna pelo número de mortes e a quota de destruição que cobra a cada minuto).

II. A geografia das palavras.

Se a pré-história terminou há três anos ou há 20 séculos não parece ter muita importância. Lá em cima, aqueles que são poder e destino se empenham em nos convencer que a história se repete, apesar do que dizem os calendários. A aniquilação do diferente é uma moda sempre atualizada. E, ainda que na essência, não há nada diferente entre as catapultas do império romano e as "bombas inteligentes" de Bush, agora o avanço tecnológico funciona como o novo capelão das tropas de ocupação (pinta de bondade o que não deixa de ser um crime à distância) e o cenógrafo do espetáculo (os bombardeios pela televisão se transformam em "fascinantes" entretenimentos pirotécnicos - CNN dixit).

Sem se importar se nos damos conta ou não, o poder constrói e impõe uma nova geografia das palavras. Os nomes são os mesmos, mas muda o que é nomeado.

Assim, o erro é doutrina política e o acerto é heresia. O diferente é agora o contrário, o outro é o inimigo. A democracia é a unanimidade na obediência. A liberdade é só a liberdade de escolher a forma de esconder nossa diferença. A paz é a submissão passiva. E a guerra é agora um método pedagógico para ensinar geografia.

Onde faltam razões, sobram dogmas. Antes o dogma dá respaldo à causa, depois a deforma e a transforma em destino. No binóculo do poder, o horizonte é sempre o mesmo, imutável e eterno. A lente do poder é um espelho. O diferente será sempre inesperado e ao inesperado se oporá sempre o medo. E o medo se fortalecerá no dogma para esmagar o inesperado. Nos binóculos do poder, o mundo é plano, descarado e sujo.

Se um estadista não pode ser lembrado por sua obra humanitária, então que seja lembrado por sua ação criminosa. E assim, a história do poder se repete: os "próceres" de ontem hoje vestem todas as baixezas e rancores. Os "iluminados de Deus" de hoje, serão os hereges de amanhã.

As palavras mudam e também as imagens. Antes, na geografia das estátuas, o dogma se tornava pedra para honrar seus fanáticos. Hoje é nas capas das revistas, jornais e noticiários televisivos e radiofônicos que o dogma guarda a memória dele mesmo nas hemerotecas, e garante que vai servir de desculpa para os que darão continuidade aos pesadelos fundamentalistas.

Na moderna teoria do estado, os seres humanos nascem diferentes. Sua incorporação na sociedade consiste num processo de educação que daria inveja ao mais cruel dos reformatórios. O esforço de todo o aparelho do Estado se dirige para "igualar" este ser humano, ou seja, para hegemonizá-lo sob uma hegemonia: a de quem manda. O grau de sucesso social, então, se mede de acordo com o aproximar-se ou afastar-se de um modelo. A homogeneidade não é fazer com que todos sejamos iguais, mas sim com que todos tratemos de ser iguais a este modelo. E o modelo é aquele que é construído por quem é poder. A hegemonia não está só no fato de que alguém manda, e sim, além disso, que todos nos esforcemos para obedecer.

Aí está a homogeneidade, não temos todos as mesmas riquezas (e nem falar do fato de que poucos as possuem as custas de muitos outros), nem as mesmas oportunidades, mas temos sim o mesmo dono e a mesma vontade de obedecer a ele (que é outra forma de dizer "servi-lo").

Quando se faz uma comparação da sociedade com a família e se diz que deve haver regras para a convivência, se "esquece" que o problema são estas determinadas regras. Aí, as palavras mudam sua geografia, já não dizem o que dizem, mas sim o que eles querem, eles que são poder, que digam.

Em algum momento da história moderna a legalidade supre a legitimidade e quando a legalidade é quebrada pelos de cima se devem adequar as leis. Quando é quebrada pelos de baixo, as leis devem ser aplicadas... para castigar seu descumprimento.

III. A geografia do poder.

Na geografia do poder, uma pessoa não nasce em algum lugar do mundo, mas sim com possibilidades ou não de dominar uma parte qualquer do planeta. Se antes o argumento de superioridade era pertencer a uma raça, agora é a geografia. Os que moram no norte não fazem isso no norte geográfico, mas sim no norte social, ou seja, estão em cima. Os que vivem no sul estão em baixo. A geografia tem se simplificado: há um em cima e um em baixo. O lugar em cima é estreito e cabem uns poucos. O de baixo é tão amplo que abrange qualquer lugar do planeta e tem lugar para toda a humanidade.

Na moderna torre de Babel, uma sociedade se diz superior quando conquista outra, não quando tem mais avanços científicos, culturais, artísticos, melhores condições de vida, melhor convivência.

Na época moderna, o poder trava múltiplas guerras de conquista. E não me refiro a "múltiplas" no sentido de "muitas", mas sim no sentido de "em muitas partes e de muitas formas". Assim, hoje, as guerras mundiais são mais mundiais do que nunca. Pois se o vencedor continua sendo um, os vencidos são muitos e por toda parte.

Declaram seu poder sobre os espaços com o argumento das bombas: aqueles que as jogam estão no norte, na parte "de cima" da torre; aqueles que as recebem estão em baixo, no sul.

Mas não são as bombas a alterarem a geografia. As bombas mudam a distribuição da geografia, seu domínio. Desta forma, nestes espaços limitados por pontos e linhas divisórias, agora domina um, amanhã domina outro. É o que se chama de "geopolítica". Na realidade, os mapas geográficos não assinalam riquezas naturais, pessoas, culturas, histórias, mas sim aquele ou aqueles que não são donos deles.

Para o poderoso, a humanidade inteira é uma criança que pode ser dócil ou rebelde. As bombas lembram ao infante humano a conveniência de ser um e a inconveniência de ser outro.

Hoje, os civis do Iraque, homens, crianças, mulheres e anciãos, vão ter logo algo em comum com o próspero empresariado norte-americano. Este fabrica os mísseis cruise, aqueles os recebem. Os exércitos de Estados Unidos e Grã Bretanha são só os adoráveis carteiros que unem dois pontos geograficamente tão distantes. De tal forma que o que devemos agradecer a pessoas como Bush, Blair e Aznar é que tenham tido o trabalho de nascer em nossa época. Sem pessoas como eles, a geografia moderna seria inconcebível.

Mas esta guerra não é contra o Iraque, ou não só contra o Iraque. É contra toda tentativa, presente ou futura, de desobedecer. É uma guerra contra a rebeldia, ou seja, contra a humanidade. É uma guerra mundial em seus efeitos e, sobretudo, no NÃO que eles provocam.

IV. O destino de Polifemo.

A guerra do eixo tragicômico Bush-Blair-Aznar e de seus tramoeiros nas "democracias" ocidentais, já teve seu primeiro fracasso. Tentou nos convencer de que o Iraque está no Oriente Médio, e não conseguiu. Como diz qualquer livro de geografia que se respeite, o Iraque está na Europa, na União Americana, na Oceania, na América Latina, nas montanhas do sudeste mexicano, e neste "NÃO" mundial e rebelde que pinta um novo mapa onde a dignidade e a vergonha na cara são casa e bandeira.

Entre outras coisas, as mobilizações em todo o planeta comprovam que esta é uma guerra contra a humanidade.

Quem entendeu bem que o Iraque está hoje em qualquer lugar do planeta são os jovens. Quando outros olham para um mapa e se consolam medindo os milhares de quilômetros que separam Bagdá de seus próprios lugares, os jovens têm compreendido que estas bombas (as que explodem e as da desinformação) não querem destruir só o território iraquiano, mas o direito de ser diferente.

E quando um jovem pinta um "NÃO" num cartaz, numa parede, num caderno, numa voz, não está só dizendo "não à guerra no Iraque", está dizendo também "não à nova torre de Babel", "não à homogeneidade", "não à hegemonia". Porque os jovens rebeldes usam o "NÃO" como pincel, e com ele na mão e no olhar pintam e adivinham outra geografia.

Como o ciclope da literatura grega, Polifemo, o poder faz do ódio ao diferente o seu único olho. Na verdade, ele é muito forte e parece invencível. Mas, também como a Polifemo, um fantasma chamado "Ninguém" lança um desafio ao poder.

Porque quando o poderoso se refere aos outros, chama-os com desprezo de "ninguém". E "ninguém" é a maioria deste planeta. Se o dinheiro quer reconstruir o mundo como uma torre que satisfaça sua soberba, o "ninguém" que faz girar a roda da história também quer outro mundo, um que seja redondo, que inclua todas as diferenças com dignidade, ou seja, com respeito. Não é ao céu que a humanidade aspira, mas sim a terra.

E assim, "ninguém" vai corroendo os cimentos da nova torre de Babel.

Porque a terra é redonda para que gire.

No mundo que está por fazer-se, à diferença deste e dos anteriores, cuja construção se atribui a vários deuses, quando alguém pergun as outras com a luz, não são ferramentas de profeta, mas sim uma intuição: o mundo, a história, a vida terão formas e maneiras que ainda não conhecemos, mas desejamos. Com seu caleidoscópio, o rebelde enxerga mais longe do poderoso com seu binóculo digital: vê o amanhã.

Os rebeldes caminham sim durante a noite da história, mas para chegar ao amanhã. As sombras não os inibem para fazer algo agora, no aqui de sua geografia.

Os rebeldes não tratam de emendar a tela ou reescrever a história para que mudem as palavras e a divisão da geografia, simplesmente procuram um novo mapa para que haja espaço para todas as palavras.

Um mapa onde as diferenças entre as maneiras de dizer "vida" não estejam nas bocas de quem as diz, mas sim na totalidade com a qual se pronunciam.

Porque a música não é composta de uma única nota, mas sim por muitas, e o baile não é só um passo repetido até o tédio.

Assim, a paz não será outra coisa a não ser um concerto aberto de palavras e muitos olhares em outra geografia...

Do Iraque das montanhas do sudeste mexicano, e vendo o céu escurecer com os

aviões e helicópteros da Operação Sentinela,

Subcomandante Insurgente Marcos.

México, março de 2003.

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Este comunicado foi divulgado pelo La Jornada em 03 de abril de 2003.


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