Sobre a Democracia Representativa

Pesquisas realizadas no sábado anterior à eleição já indicavam que mais de 20% dos eleitores votariam em branco ou anulariam seu voto nas eleições parlamentares do dia 14 deste mês na Argentina. Os números não só se confirmaram como atingiram um recorde histórico. A soma dos votos inválidos é maior que a de qualquer candidato, na província de Buenos Aires. Se, no entanto, somarmos tal contingente com os 30% que normalmente se abstêm o número salta para mais de 50%, ou seja, mais da metade do eleitorado disse apenas um não ou resolveu não dizer nada. Pessoas confeccionaram, em casa, cédulas com personagens históricos argentinos.

O que se passa no país vizinho é parte de uma tendência mundial de descrença na democracia representativa traduzida no aumento de abstenções, votos nulos e brancos. Tendência que pode ser facilmente explicada pela já quase completa indistinção entre "situação" e "oposição" ou entre os partidos de "esquerda" e de "direita". Nesse terreno não só as batalhas ideológicas fazem parte do passado, também as diferenças programáticas se esvaneceram ou adotaram uma lógica esquizofrênica, sendo que, as vezes, algum projeto claramente de direita é executado por um governo de esquerda e vice-versa, tudo de acordo com as últimas pesquisas de "opinião pública". Nesses rituais que se sucedem a cada quatro anos, nada se celebra mais, pois, há tempos, que são ensaiados como "rituais de passagem", mas não mudam coisa alguma. Ainda neste ano, o Reino Unido também teve uma taxa recorde em suas eleições parlamentares que deram continuação à maioria trabalhista, que, para não fugir à regra, vem assumindo propostas dos conservadores e participação irrefletida nas campanhas militares norte-americanas, ainda que, no plano do marketing, se esforce para criar uma Terceira Via.

Cientistas políticos se calam diante de tal fenômeno e, pasmados, vêem seu objeto virar pó. Também pudera, encontrar um cientista político crítico da democracia representativa é tão difícil como encontrar um economista que não seja pró-mercado, não sendo à toa que a ciência política tem incorporado alguns métodos da economia, não sendo à toa também que essa tendência surja no mundo anglo-saxão, antes de se espalhar pelo mundo na mesma velocidade que a liberação dos "mercados".

Alguns "representantes da sociedade civil" deram várias declarações iradas à respeito de uma pequenina campanha a favor do voto nulo em São Paulo, por ocasião das eleições municipais do ano passado. O coro era composto por publicitários e empresários que posavam de guardiões da democracia. O mesmo se deu quando da discussão da obrigatoriedade do voto no congresso nacional. Cientistas políticos e políticos temiam que o fim do voto compulsório iria aumentar em demasia a abstenção e assim minar a legitimidade da democracia. Se as pessoas deixarem de votar... seria mesmo o Caos? Não há outra forma possível de organização política? Bom o que pode ser dito é que tem mais pessoas pensando nisto do que se possa crer, algumas já tentam, inclusive, praticar outras formas0. Mas em relação à boa parte dos intelectuais e para a toda classe política não seria absurdo imaginá-los dizer que o importante é votar não interessando tanto em quem. Como se dissessem: Tudo bem, não precisa votar em mim ou em meu candidato, mas eleja meu sistema! A democracia representativa nos é mostrada como condição necessária para a existência em sociedade, mas já não teria ela esgotado sua fase emancipadora? Não estaria agora funcionando de ponta-cabeça a ponto de apenas buscar controlar o mundo social?

No Brasil, um aumento significativo do voto de protesto (seja ele branco ou nulo e por que não ver na maior parte daqueles que se abstêm uma forma de protesto) só vai ganhar grandes proporções em 2006, visto que, em 2002, boa parte do eleitorado ainda acreditará na "mudança". Um considerável crescimento em 2006 é totalmente indiferente à vitória ou à derrota do candidato Lula nas eleições do ano que vem. Mais de dez anos de neoliberalismo jogou o pais na crise, o governo FHnistão (Macaco Simão) destruiu todas as instituições e instrumentos estatais que possibilitariam uma margem de manobra maior para sairmos da própria crise. O quadro se agrava com a recessão mundial iniciada em 2001. Na economia mundial, capenga desde 1973, apenas China e Índia crescem a uma taxa considerável, justamente aqueles que não embarcaram na canoa furada da globalização.

No país parceiro de Mercosul, a democracia já se agredia ao dar super poderes ao recém empossado ministro Domingo Cavallo, o qual tinha conseguido um sofrível terceiro lugar nas eleições presidenciais. Mas neoliberalismo agonizante é assim mesmo, de acordo com as conveniências de mercado qualquer terceiro colocado pode, passado alguns meses, ser o efetivo mandatário de uma nação. Mas um herói neoliberal tem vida curta, pois o mesmo mercado que o elege, o cospe feito um bagaço, Gustavo Franco que o diga.

Os votos de protesto aumentam no exato momento em que a Argentina passa pela maior crise econômica da sua história e seu já antigo super-herói adia com a barriga o colapso de seu sistema financeiro. Às vesperas das eleições, agências de consultoria colocaram o país no primeiro lugar dos mercados mais arriscados do mundo. Risco maior que o Equador, que decretou moratória o ano passado, e do Paquistão, vizinho da guerra.

Olhando para a frente, é difícil crer que a combalida democracia representativa retome suas antigas energias utópicas, mesmo se fizermos todos como os norte-americanos que arregimentaram ninguém menos que Madonna para tentar animar o eleitor desiludido a votar na penúltima eleição presindencial.

Em primeiro lugar , porque a globalização tira mesmo poderes do Estado-nação, locus por excelência da democracia representativa. Em segundo lugar, porque todos os partidos e tendências da esquerda estão de mãos atadas e se olharmos mais de perto veremos que estão todos na mesma vala comum do já requentado pensamento único. Em terceiro lugar, porque o movimento antiglobalização (uso o termo na falta de outro melhor) e seu irresistível crescimento recusa a estratégia da esquerda tradicional (reformista ou revolucionária), segundo a qual, faz-se necessário ascender ao Estado, seja pelas armas ou pelo voto, para só então mudar o mundo. Diante da falência do Sistema Soviético, dos movimentos de liberação nacional, da social democracia européia e do desenvolvimentismo latino-americano, o Estado não é mais objetivo a ser atingido por essa miscelânea, esse movimento de movimentos anticapitalistas. Pelo contrário, o poder estatal é caracterizado como sendo a segunda metade da maquinaria de alienação, sendo a outra o mercado, responsável pela barbárie em curso, pela agressão aos povos, pela insustentabilidade ecológica e extinção de espécies, e pela atual epidemia depressiva que ataca o Norte e o Sul, enfim, um mundo doente cuja "cura" também de tornou uma fonte de lucro para as corporações farmacêuticas, ramo dos mais oligopolizados da economia mundial.

Atualmente, a democracia representativa moribunda dá os seus sinais ao exalar seu fedor de gás lacrimogêneo.

Luciano Pereira
25/10/01
SP

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