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Beijando a Cruz

Paulo Eduardo Arantes

LulaComeço pelo Antigo Testamento. Na fórmula famosa e ainda verdadeira, o Capital é a própria contradição em processo. Valor que se auto-valoriza sugando o mesmo trabalho vivo que se empenha em tornar cada vez mais redundante. Em busca de sobrevida, foge para a frente. A desmedida e a escalada se encontram no seu DNA. Não surpreende portanto a regularidade com que tende à auto-destruição. Em plano ciclópico, nas guerras pela hegemonia mundial. Em tais ocasiões, arrasta consigo todas as classes sociais, anestesiadas em seu antagonismo pelo contágio de tamanha compulsão para o desastre. A primeira grande revelação deu-se em agosto de 1914, quando as classes trabalhadoras, alinhadas com suas respectivas burguesias imperialistas, marcharam para o matadouro. A derradeira está começando a se desenrolar diante dos nossos olhos. É bom esfregá-los bem. Recentemente, embandeirados operários americanos da construção civil se reuniram em Nova York para manifestar apoio a uma guerra de ocupação que lhes renderá empregos no ramos promissor da reconstrução humanitária. Seja qual for a agenda oculta da presente guerra, uma coisa é certa: trata-se de uma guerra sem futuro, se é que se pode falar assim. A prova por absurdo deste fim de linha transparece já na obscena cegueira de manchetes do tipo: "rápido fim da guerra no Iraque aumenta otimismo dos investidores globais com os mercados emergentes". Logo saberemos.

Caso o século que se inicia testemunhe o recomeço do Grande Jogo para o controle da Eurásia - quer dizer, a disputa de morte pelo novo dinheiro mundial e recursos energéticos cada vez mais escassos -, não é inverossímil antever no seu desfecho algo como um End Game beckettiano para as sociedades industriais, no prognóstico bem argumentado de Richard Heinberg. Digamos que o desenlace tende mais para uma ditadura militar global do que par um novo Bretton Woods. Na verdade, sempre estivemos às voltas com um sistema suicida. Só mesmo por efeito de uma miragem retrospectiva deixamos nostalgicamente de enxergar na prosperidade dos trinta anos de consenso keynesiano a vida à beira do abismo termo-nuclear, como se uma não fosse possível sem a outra, uma economia de preparação permanente para a guerra e a felicidade material das classes confortáveis. Pois bem: estamos inaugurando uma nova Era, algo como um Estado de Emergência planetário, em que o triunfo ideológico avassalador do capitalismo e o seu novo ímpeto suicida correm um na direção do outro. O espantoso paradoxo de nosso tempo vem a ser a reativação desta esquizofrenia estrutural. Não há um agente do mercado que ignore o caráter destrutivo da livre circulação dos capitais num universo essencialmente assimétrico, e no entanto, não desgrudam os olhos dos monitores. Na boa pergunta de Robert Kurz, por que tanta indignação com o fundamentalismo dos homens-bomba ao lado de igual confiança cega no programa demente da economia global de mercado?

Aqui entramos nós. O risco país diminui, o dólar recua, a inflação desacelera e até já viramos "a estrela dos emergentes no pós-guerra" e contudo é bem provável que um historiador do futuro intitule o capítulo referente ao período inaugurado pelo triunfo eleitoral do maior partido de esquerda do ocidente, Crônica de um Suicídio.

No primeiro mês de governo não por acaso falou-se muito em esquizofrenia a propósito do desencontro sabido: discurso enfático à esquerda, e muita energia no encaminhamento de políticas ortodoxas. Quatro meses depois, a mudança de rota assumiu proporções tais que já não é mais possível recusar a hipótese da autodestruição, nos termos enunciados acima - menos um trivial tiro no pé (esquerdo) em matéria de política econômica, do que uma fulminante conversão à lógica mortal da crise. Não vou, nem poderia, discutir alternativas macro-econômicas, nem chorar o leite derramado, toda a tradição crítica brasileira e latino-americana descartada sem maiores considerandos. Creio todavia que também interessa e muito identificar a natureza da mutação quase antropológica em curso, a continuidade por assim dizer "espiritual" lograda por um sistema de domina;cão social tão acachapante que pode se dar ao luxo de se perpetuar entregando o comando primeiro a um sociólogo acometido de apoteoso mental, depois a um líder sindical generosamente empenhado em levar todas as classes sócias à mesa da comunhão nacional. Tampouco explica muita coisa observar que o próprio Partido dos Trabalhadores já vinha entregando os pontos há um bom tempo. Pelo contrário, apesar de todos os pesares, durante a campanha o show de vileza e terror econômico em que se esmerou a direita prestou o inestimável favor de revelar o irreconciliável inimigo de classe num adversário eleitoral que apenas vendia paz-e-amor e outras amenidades. A memória recente deste antagonismo só fez aumentar a estupefação provocada pela retomada da agenda falida do período anterior e seu cortejo de racionalizações mambembes.

Não é falso afirmar que a lógica da situação finalmente se impôs e que beijando a cruz - primeiro na Carta aos Brasileiros, em seguida endossando o acordo com o FMI, Lula teria selado o seu destino. Também não é falso alegar a herança de um país arruinado para além da imaginação. Como deve ter pesado igualmente a percepção de que a eleição foi ganha um pouco por acaso e no centro do espectro político, onde reinam os temores de uma classe média tão conservadora quanto sua congênere Argentina, que aliás se prepara para cometer um segundo suicídio, tomada pela mesma certeza paralisante de que qualquer mudança será sempre para pior. A essa visão se somaria outra não menos verdadeira de que tal imaginário congelado contagiara amplos setores das camadas populares.

O que pensar? Aqui uma chave possível para todo esse maldito imbroglio - infelizmente um tanto remota ou "filosófica", mas não vejo outra para tamanha reviravolta. A boa pergunta neste caso talvez seja a mais rasa de todas: afinal, o que fez a cabeça do núcleo duro do governo? Não se trata de simples adesão a tal ou qual doutrina, isso é mera conseqüência. Trata-se a rigor de um ritual. Isso mesmo, algo como uma prática material muito próxima da gesticulação religiosa. E de fato tudo se passa como se nos defrontássemos com uma verdadeira conversão à "religião da vida cotidiana", como Marx se referia à liturgia requerida pelo serviço do Capital. Parece até behaviorismo, pois "reforço" é o que não falta.

Me explico. Segundo o filósofo Slavoj Zizek, deveríamos reler numa outra chave a célebre frase de Marx a respeito do modo de funcionamento da ideologia enquanto falsa consciência: "disso eles não sabem, mas o fazem". A seu ver, a ilusão ideológica não se situa no "saber" mas no "fazer". Reconsideremos por este ângulo o nosso drama. A primeira vista, o desconcerto atual decorreria da discrepância entre o que a esquerda no governo efetivamente faz e o que pensa estar fazendo. Seria então o caso de ajustar discurso e realidade, ultrapassando esta divisão interna etc. Acontece que não é bem assim, é muito mais grave. Lula e seus companheiros sabem muito bem como as coisas são, mas continuam a agir como se não soubessem. Durante oito anos demonstramos a falência de uma receita para o desastre, mas agora vai dar certo... O osso é bem mais duro de roer porque, ao contrário do grupo dominante anterior, não são cínicos, não gozam da impunidade de classe que permitia ornamentar o esbulho com asneiras sociológicas. A boa fé de agora porém é de outra ordem. No esquema proposto, nos deparamos com uma crença muito especial, pois não se trata em absoluto de um estado mental interno, mas de "uma crença radicalmente externa, incorporada no procedimento efetivo das pessoas". O exemplo de Kafka talvez ajude. Sabemos que a burocracia não é assim tão onipotente como é representada no universo kafkiano, mas é esse "exagero" o verdadeiro assunto. Ele não se encontra no que sabemos a respeito, mas no âmago de nossa conduta efetiva na presença da máquina burocrática, conduta justamente regulada por uma crença em sua onipotência. Ou por outra, agimos como se acreditássemos na sua onipotência. Sobre este "como se" ergue-se toda a construção da realidade. Tal como o rei do exemplo de Marx: "um homem só é rei porque outros homens colocam-se numa relação de súditos com ele. E eles, ao contrário, imaginam ser súditos por ele ser rei". Mas essa "imaginação" está por assim dizer lá fora, sustentando o vínculo social.

A bizarra teologia materialista do Pascal, redescoberta por Zizek, nos permitirá entrever ainda melhor o enigma da conversão que está derrubando e desmoralizando a esquerda brasileira. Como somos "tanto autômato quanto mente", provas, segundo Pascal, convencem apenas a mente, enquanto o hábito fornece as provas em que verdadeiramente acreditamos, daí a sua força, que dobra o autômato que somos. Pois esse autômato "inconscientemente leva a mente consigo". Creio que foi este automatismo que operou o milagre e fez enfim o PT ver a luz. Numa palavra (do filósofo), se os sujeitos não acreditam, as coisas acreditam por eles. Essa a base mística da autoridade do Capital. Sabemos que é apenas uma relação social, de exploração ainda por cima, e que não há nada de mágico nisso, mas agimos como se não soubéssemos.

Beijar a cruz deve ser tomado nessa acepção pascaliana e materialista. Voltemos à lógica da situação, ao ABC da política contemporânea, vender confiança aos mercados e reduzir os custos da incerteza, que podem ser fatais num sistema desenhado para operar sob a ameaça permanente da morte súbita. Mas como vender credibilidade sem crer? Vinte anos de ateísmo não recomendam. Tampouco declarações registradas em cartório. Da esquerda exige-se uma profissão de fé que em princípio ela não poderia oferecer. Só um milagre. Que afinal aconteceu. Nos termos de há pouco, encarregaram as coisas, que povoam o mundo religioso da vida cotidiana regulada pelos mercados, de acreditarem por nós. "Você quer descobrir a fé e não sabe o caminho? Quer curar-se da descrença e roga por remédio?" acudia Pascal à aflição de uma consciência de cuja constituição originária inibia a aposta em Deus - "minhas mãos estão atados e meus lábios cerrados; sou forçado a apostar e não estou livre". Pois então, prosseguia, "aprenda com aqueles que um dia estiveram atados com o você e que agora apostam tudo o que têm". Religião-cassino, numa palavra, sem falar no comportamento de drogado do apostador. Conhecemos a receita, a do hábito que dobra o autômato em nós. Como diria outro filósofo (mais um), confiem no crescimento da composição orgânica do ser humano, cada vez mais análoga à do próprio Capital. William Randolph Hearst, o Cidadão Kane, acrescentaria que nunca se perde dinheiro quando se subestima a "mente" em favor do "autômato". Voltando ao caminho das pedras: "eles se portaram exatamente como se acreditassem, recebendo água-benta, mandando rezar missas e assim por diante. Isso o fará acreditar com muita naturalidade". Em suma, beijar a cruz uma ou duas vezes por semana. Quer dizer: "submeta-se ao ritual ideológico, entorpeça-se repetindo os gestos sem sentido, aja como se já acreditasse, e a crença virá por si só", esta a súmula do sistema lotérico de Pascal.

Armou-se em conseqüência no governo algo como um serviço Delivery [ver ao lado artigo de Leda Maria Paulani e Fernando Haddad]. De tanto entregar o prometido, com a exata regularidade litúrgica recomendada por nosso consultor ad hoc, a lógica da aposta na Agenda virou fé, que por sua vez irradia na forma da credibilidade almejada. Aposta por necessidade de sobrevivência, não há dúvida. Aliás o cerne mesmo da estratégia de venda da vida eterna concebida por uma gênio do marketing como Pascal. Há mais ainda, o inestimável conforto de não precisar renunciar às convicções anteriores. Se a fé que gera credibilidade se materializa num ritual externo, minha crença íntima pode continuar publicamente animada por reminiscências de esquerda: o Capital não se queixa, até agradece, pois "objetivamente" estarei rezando. Daí a sensação de esquizofrenia. Ou de suicídio, apenas o observador se afaste um passo que seja. O diabo (não há outra palavra) é que o automatismo de um tal sistema de dominação, justamente por ser impessoal e cego, sempre joga a favor dos exploradores, mesmo quando os ameaça de destruição. Em cima há sempre mais escolhas do que risco, reservado com exclusividade aos de baixo.

Fantasia teórica? O raciocínio pode parecer extravagante, porém no fundo nada mais fiz do que estender democraticamente ao aparelho dirigente, e hoje governante, de um grande partido de esquerda, o mesmíssimo argumento que o melhor de nossa reflexão crítica vem desenvolvendo acerca dos derradeiros e assustadores desdobramentos da sociedade de consumo. Como neste aspecto os sistema não cuida muito de distinguir elite e massa, é só inverter o raciocínio e verificar que, na sua ânsia desmedida de gratificação, o consumidor anônimo de todos os dias também se ajoelha diante das grandes marcas e beija a cruz. E também sabe perfeitamente que a grife é apenas um nome, e no entanto, procede como se não soubesse. Novamente dissociação entre sentimento pessoal e agenciamento externo da crença através do rito sumário do consumo. No final das contas, as conversões espetaculares de partidos de esquerda pesam bem menos no triunfo atual da contra-revolução capitalista do que o consentimento de massa gerado por tais práticas materiais. O keynesianismo americano de guerra mal poderia sufocar o sistema soviético não fosse a corrosão interna do consumo reprimido pela ditadura da escassez. Aqui o viés auto-destrutivo da atual "normalidade" capitalista, a junção entre o reflexo pavloviano dos agentes do mercado e seus operadores políticos e a violenta ilimitação dessa demanda imperativa do consumo de massa. Uma confluência a tal ponto mortífera que não seria injusto incluir esse gigantesco exército de crentes numa espécie de extensão da atual máquina de guerra imperial, que afinal existe para perpetuar essa insaciável fome canina do consumo e seu custo energético demente. Não penso ser injusto encaixar nessa gravitação de conjunto a conversão suicida do Governo Lula à ortodoxia econômica. Um alto dignitário do novo regime afirmou recentemente que uma tal linha justa veio para ficar, pois a crise internacional seria permanente. Essa a lógica do estado perpétuo de emergência.

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