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O ensaio geral
por Marcos Domich [*]
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O ensaio geral

A CENTELHA QUE INCENDEIA A PRADARIA. - Poucos calcularam com exatidão a magnitude da convulsão social que sacudiu a Bolívia, particularmente na primeira quinzena de outubro. Quando começou o movimento, em setembro, parecia que seria mais uma de tantas mobilizações ou protestos sociais por um fato pontual, neste caso, a prisão de um dirigente camponês - por uma razão discutível como consigna de mobilização. Imediatamente somaram-se outras reivindicações e começou uma greve de fome nas instalações de uma rádio aymará, na cidade de El Alto. Assim resultou perfilado o 1º núcleo de resistência ao neoliberalismo dirigido por uma das frações da Confederação Sindical Única de Camponeses (CSUTCB), a de Felipe Quispe e o Movimento Índio Pachacuti (MIP). Aqui se confundem os limites entre o partido e o sindicato agrário, o que não elimina nem minimiza as diferenças e fissuras entre dirigentes. O que levou ao núcleo em El Alto, para além das reivindicações concretas, foi, sem dúvida, a inclusão de bandeiras de luta como a defesa do gás ("gás para os bolivianos!" e "não à venda do gás!") e o rotundo "Não à ALCA!". Evidente que estas duas consignas têm um nítido conteúdo antioligárquico-antitransnacional e antiimperialista. Para alguns, tratava-se de uma insuspeitada clarividência, impossível nos rarefeitos ares dos cumes altiplânicos.

A luta desencadeada pelo núcleo de El Alto foi acompanhada por bloqueio de estradas e marchas que, mesmo não tendo nesse momento grande repercussão, constituíram uma espécie de pano de fundo que alimentou continuamente o protesto social que se estendeu em escala nacional. Assim sucedeu com o que se constituiu no 2º núcleo, o de Cochabamba. Este núcleo lançou a iniciativa de uma marcha nacional em defesa do gás, no dia 19 de setembro. Fundamentalmente, o núcleo cochabambino estava integrado pela Federação de cocaleiros, uma "Coordenação do Gás", o chamado "Estado Maior do Povo", todos próximos do Movimento ao Socialismo (MAS) e de seu líder Evo Morales, e com o apoio de algumas organizações sindicais que, concordando com os objetivos da luta, empenhavam-se em manter sua independência sindical (do Estado e dos partidos), velha divisa das agremiações bolivianas.

A COB TOMA POSIÇÃO. Estando convocada a marcha, surge o "terceiro em discórdia", a COB, que estrearia seu brilhante Comitê Executivo, encabeçado por Jaime Solares. Desconhecida pelo governo de Sánchez de Lozada (Sdl), questionada por alguns setores trabalhistas manipulados por remanescentes do velho CEN oficialista e pró-neoliberal, com o clichê de "obsoleta", "sem convocatória", "morta ou moribunda" para os meios de comunicação e os "analistas", a COB realizou o histórico Ampliado de Huanuni (17/Set/03). Em meio a uma algaravia de posições inflamadas, de discursos incendiários e até de uma ou outra posição desarrazoada, crivada de elementos alheios ao movimento trabalhista e sindical ("guerra civil, guerra civil!") o ampliado ordenou a participação na marcha do dia 19, declarou a Greve Geral Indefinida e proclamou, como objetivo central, a "RENÚNCIA DE SÁNCHEZ DE LOZADA"!

A marcha nacional, verdadeira prova de fogo para a COB, reuniu uma multidão, sobretudo em La Paz e Cochabamba e nos antigos distritos mineiros: Potosí, Llallagua-Siglo XX, Oruro. Em meio a uma notável ordem troaram, todavia, os "cachorros de dinamite", recordando-nos os fragores do combate social que, mais de uma vez na história boliviana e tendo como centro a combativa COB, infligiram humilhantes derrotas à oligarquia.

Em meio a um ascenso paulatino da exaltação de ânimos da sociedade, no dia 20 de setembro sucede o "Massacre de Warisata", lugar emblemático da alfabetização aymara e da Escola Ayllu. O torpe embaixador estadunidense, Sr. Greenle, pediu o "resgate" imediato de uns turistas americanos (entre outros) que, entretanto, estavam passando bem na sucursal do paraíso terrestre (Sorata, onde, segundo Villamil de Rada, nasceu a língua de Adão, o aymara). A matança, da qual participou diretamente o ministro de Defesa, Carlos Sánchez Berzaín (CSB), provocou uma onda de indignação nacional. Localmente, o povo se dispôs à imolação. Até empunhou uns velhos fuzis Mauser, mais exibidos à imprensa que propriamente usados. Outra vez o alarido era funcional às necessidades da repressão.

Aqui é que surge, pela primeira vez, um indício de que nas Forças Armadas havia oficiais cautelosos. O quartel de Achacachi não participou da matança que esteve a cargo de militares e carabineiros vindos de La Paz, na caravana organizada pela CSB. Paulatinamente vão se concentrando as consignas de luta e reduzindo-se à defesa do gás, o não à ALCA e, cada vez com maior freqüência: FORA GONI! (alcunha de Sdl). Neste clima, mais e mais acalorado, produz-se a declaratória da arada cívica em El Alto, por 72 horas. Cumpridas estas horas, e sem resposta às demandas populares, a paralização passa a ser indefinida. Esta paralização não só atinge El Alto, como também afeta seriamente La Paz. Fecham-se os mercados e as vendedoras adotam atitudes beligerantes e cheias de lucidez política; uitas surpreendem por seu elevado nível político. Inesperadamente, ocorre uma marcha exclusivamente de açougueiros: são mais de 1500, mostrando que não há setores nem ofícios neutros na grande batalha.

AS CARAVANAS DA MORTE. - A paralização afeta a provisão de carburantes (gás liquefeito e gasolina). É neste momento que a Sdl mostra toda sua determinação autoritária e sua decisão de afogar em sangue todo o protesto social. Pouco depois da luta contra o "impostaço" (12 e 13 de fevereiro), soube-se que, dissipado o susto, Sdl, com o apoio mais próximo dos assessores americanos, tomou medidas para afrontar com dureza a nova onda e vingar-se dos "coices na bunda" - segundo sua torpe linguagem ianque - que as forças populares lhe haviam desferido, obrigando-o a retirar os decretos do "impostaço". Na verdade, as informações que vazavam acerca dos propósitos do governo eram de dar calafrios. Sdl e seu fiel escudeiro CSB, convertido no Montecinos altoperuano, calcularam uma quota de 500 a 2000 mortos. O plano completo era mais ou menos o seguinte: deixar que o povo marchasse ("podem marchar dois meses", disse CSB), até cansar-se, e em dezembro firmar a saída do gás pelo Chile, para o Chile e até a Califórnia. Na ocorrência de transtornos, pura e simplesmente reprimi-los manu militari , assegurando que tanto a hierarquia militar como a policial estejam adequadamente subornadas. A mostra de tão truculento plano foram as matanças dos dias 12 e 13. Os dias se repetiam com suas seqüelas de dor e luto, confirmando aquilo que era uma certeza (pelo menos para o PCB [1] : "o neoliberalismo requer a crueldade social, para ser aplicado". Uma nova caravana da morte foi organizada por CSB, com o pretexto de prover de carburantes a população. Os carros-pipas foram escoltados por caminhões com soldados que dispararam a torto e a direito, para "abrir caminho". O resultado foi que a taxa de vítimas fatais chegou perto de cinqüenta. Contrariamente às previsões dos Sánchez, não foi o medo e a debandada o que marcou os moradores de El Alto em particular, mas a ira e o ódio a um governo que, para a grande maioria dos bolivianos, devia ser deposto. As consignas mobilizadoras acerca da defesa do gás, do rechaço à ALCA e ao código tributário, passaram a um segundo plano. O que predominava era que SdL deveria renunciar, como resultou ao final; porém, deve-se registrar que os manifestantes, na realidade, pediam sua cabeça e se não fugisse a tempo poderia ter tombado aos pés de um farol.

AS FORMAS DE RESISTÊNCIA POPULAR - Após o massacre de El Alto, a população começa a desenvolver, em muitos casos espontaneamente e de uma forma muito criativa, táticas de enfrentamento militar, em resumo, formas de autodefesa. São cavadas valetas antitanque, hostilizam-se os soldados com estilingues (fisgas) e pedras, estalam petardos e "cachorros" de dinamite. Estabelece-se um sistema de vigília e alarmes e aparecem a cada esquina pessoas que se conectam rapidamente umas com as outras; organizam as hostilizações e mobilizam a população para que assuma a provisão daqueles que participam das barreiras e das marchas. As lojas funcionam clandestinamente à noite e aliviam a falta de alimentos. Entre os dias 13 e 17, é necessário contabilizar que o movimento logrou paralisar outras cidades importantes, como Cochabamba, Oruro, Potosí e Sucre e muitas capitais de província. Até Santa Cruz, que o governo achava que estivesse calma, era o objeto de marchas camponesas e de mobilizações autóctones. Há também uma guerra psicológica; os dirigentes camponeses, sobretudo aymarás, anunciam a marcha de suas hostes sobre La Paz.

A MESA "COJA" - Carlos Diego Mesa Gisbert, o vice-presidente do binômio neoliberal das eleições do ano de 2002, de família de posição, empresário dos meios de comunicação, tinha assimilado muito mansamente a fórmula e o programa de Sdl. Escritor e comentarista, era um dos cabeças que propagandeavam o fim das ideologias e do socialismo. Entretanto, historiador lúcido, forçado pela historiografia a encarar com rigor a realidade social e política, acertou na análise da conjuntura concreta: no dia 13, rompeu relações com Sdl, sem renunciar à vice-presidência. Parecia, ao mesmo tempo, dotado de um aguçado olfato a respeito da sucessão constitucional que impulsionava à maturidade política, esquerda, progressistas e democratas, que apoiaram as organizações sindicais. A força e a legitimidade do governo de CMG é, por princípio, diferenciar-se essencialmente de Sdl.

OS MINEIROS EM AÇÃO. - Entretanto, o elemento decisivo será a marcha de protesto dos mineiros de Huanuni e cooperativistas mineiros tanto deste distrito como de outras minas do Norte de Potosí e do Departamento de Oruro. A marcha foi convertida em coluna ofensiva. A qualidade do armamento do destacamento mineiro frente à do exército não admite comparação, porém, ao mesmo tempo não se poderia ignorar que tinha uma peculiar capacidade de fogo. Bem manejada, como sabem fazê-lo os mineiros, não é um armamento desprezível. A isto soma-se o fato de que a marcha mineira, na localidade de Patacamaya, confluiu com outros milhares de manifestantes em marcha, cujo número adquiriu aparência militar; é a força própria da multidão, pois se tratava de uns 5000 manifestantes frente a um destacamento militar de uns 400 homens. O comandante militar calculou com responsabilidade: permitiria a passagem dos mineiros se estes entregassem suas dinamites. Evidentemente, não as entregaram todas, porém lograram passar. Foi o golpe fulminante para um governo que já cambaleava. Outro fato similar acontecia na zona Chasquipampa da cidade de La Paz. O elemento principal de apoio de SdL, a força militar, começava a dar mostras de uma franca vacilação. A 2a força armada do governo, os policiais aceitam confraternizar com os manifestantes em pleno centro da cidade e se recolhem às unidades, temporariamente.

AS CAMADAS MÉDIAS. - Assim se chega ao dia 15, quando Ana María Romero, a popular "Anamar", ex-defensora de Pueblo, convoca uma greve de fome nacional. A resposta é imediata: centenas de cidadãos, artistas, profissionais, universitários se refugiam nas paróquias cedidas com resolução e simpatia pelos padres. Também a Igreja Católica, mesmo não tendo se pronunciado oficialmente, não via outra saída senão a renúncia de SdL. A consigna da COB foi precisa: "mulheres à greve de fome, homens às marchas". Como estes tipos de movimentos tornam-se regulares, produzem-se discrepâncias dentro dos partidos de coalizão (MIR e NFR), alguns ministros renunciam, há deputados que não obedecem a seus chefes e finalmente no dia 17 se atrevem, finalmente, a dizer ao presidente que não lhe restava outra saída senão renunciar.

Perto das 17 horas, SdL abandona a residência presidencial e volta para Santa Cruz, de onde enviará, por fax, seu pedido de renúncia. Um neoliberal contumaz; um capitalista que acreditava que podia submeter todo um povo à concretização de seus negócios com as transnacionais; um homem que estava decidido a matar para manter seu poder pessoal e o domínio de sua classe, caía ante o peso da multidão, o peso de um povo cheio de coragem e decidido a derrotar seus sempiternos opressores e exploradores. Porém, a luta não se conclui em 17 de outubro, e a maior lição que o povo recolhe é a de que é possível derrotar o neoliberalismo. O ensaio geral já foi realizado.

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NOTAS
1- Desde os pronunciamentos de 1985 até a Declaração de 30 de Agosto deste ano (ver "Causa" nº 4) insistiu-se neste tópico.

[*] Primeiro-secretário do Partido Comunista da Bolívia. domich2001athotmail.com .

Tradução de Lígia Klein.


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