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O país que quer existir
Por Eduardo Galeano 19/10/2003 às 21:37
http://brasil.indymedia.org/pt/blue/2003/10/266220.shtml

Uma imensa explosão de gás: isso foi o levante popular que sacudiu toda a Bolívia e culminou com a renúncia do presidente Sánchez de Lozada, que fugiu deixando pra trás muitos mortos.

O gás ia ser enviado à Califórnia, a um preço ruim e em troca de mesquinhas regalias, através de terras chilenas que em outros tempos haviam sido bolivianas. A saída do gás por um porto do Chile colocou sal na ferida, em um país que desde há mais de um século vem exigindo, em vão, a recuperação do caminho até o mar que perdeu em 1883, na guerra que o Chile ganhou.

Mas a rota do gás não foi o motivo mais importante da fúria que ardeu por todas as partes. Outra fonte essencial teve a indignação popular, que o governo respondeu a bala, como é costume, regando de mortos as ruas e os caminhos. A gente se levantou porque se nega a aceitar que ocorra com o gás o que antes ocorreu com a prata, o salitre, o estanho e todas as outras coisas.

A memória dói e ensina: os recursos não renováveis se vão sem dizer adeus, e jamais regressam.

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Lá por 1870, um diplomático inglês sofreu na Bolívia um desagradável incidente. O ditador Mariano Melgarejo ofereceu-lhe um copo de chica, a bebida nacional feita de milho fermentado, e o diplomático agradeceu mas disse que preferia chocolate. Melgarejo, com sua habitual delicadeza, o obrigou a beber uma enorme vasilha cheia de chocolate e depois passeou com ele em um burro, montado ao contrário, pelas ruas da cidade de La Paz. Quando a rainha Vitória, em Londres, ficou sabendo do assunto, mandou trazer um mapa, riscou o país com uma cruz de giz e sentenciou: "A Bolívia não existe".

Várias vezes escutei esta história. Será que ocorreu assim? Pode ser que sim, pode ser que não.

Mas essa frase, atribuída à arrogância imperial, pode ser lida também como uma involuntária síntese da atormentada história do povo boliviano. A tragédia se repete, girando como um carrossel: desde há cinco séculos, a fabulosa riqueza da Bolívia maldiz aos bolivianos, que são os pobres mais pobres da América do Sul. "A Bolívia não existe": não existe para seus filhos.

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Lá na época colonial, a prata de Potosí foi, durante mais de dois séculos, o principal aliento do desenvolvimento capitalista da Europa. "Vale um Potosí", se dizia, para elogiar o que não tinha preço. A meados do século dezesseis, a cidade mais povoada, mais cara e que mais esbanjava no mundo brotou e cresceu ao pé da montanha que manava prata. Essa montanha, o chamado Cerro Rico, devorava índios. "Os caminhos estavam cobertos, que parecia que se mudava o reino", escreveu um rico mineiro de Potosí: as comunidades se esvaziavam de homens, que de todas as partes marchavam prisioneiros, rumo à boca que conduzia aos buracos escavados. Do lado de fora, as temperatudas de gelo. Do lado de dentro, o inferno. De cada dez que entravam, somente três saíam vivos. Mas os condenados à mina, que pouco duravam, geravam a fortuna dos banqueiros flamencos, genoveses e alemães, credores da coroa espanhola, e eram esses índios que faziam possível a acumulação de capitais que converteu a Europa no que a Europa é. O que ficou na Bolívia, de tudo isso? Uma montanha oca, uma incontável quantidade de índios assassinados por extenuação e uns quantos palácios habitados por fantasmas.

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No século dezenove, quando a Bolívia foi derrotada na chamada Guerra do Pacífico, não só perdeu sua saída ao mar e ficou encurralada no coração da América do Sul. Também perdeu seu salitre.

A história oficial, que é história militar, conta que o Chile ganhou essa guerra; mas a história real comprova que o vencedor foi o empresário britânico John Thomas North. Sem disparar um tiro nem gastar um centavo, North conquistou territórios que haviam sido da Bolívia e do Peru e se converteu no rei do salitre, que era então o fertilizante imprescindível para alimentar as cansadas terras da Europa.

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No século vinte, a Bolívia foi o principal abastecedor de estanho no mercado internacional.

As embalagens de folha-de-flandres, que deram fama a Andy Warhol, provinham das minas que produziam estanho e viúvas. Na profundidade dos buracos escavados, o implacável pó de salitre matava por asfixia. Os pulmões dos trabalhadores apodreciam para que o mundo pudesse consumir estanho barato. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Bolívia contribuiu à causa aliada vendendo seu mineral a um preço dez vezes mais baixo que o preço de sempre. Os salários dos trabalhadores se reduziram a nada, houve greve, as metralhadoras dispararam fogo. Simón Patiño, dono do negócio e amo do país, não teve que pagar indenizações, porque a matança por metralha não é acidente de trabalho.

Então, Dom Simón pagava cinqüenta dólares anuais de imposto de renda, mas pagava muito mais ao presidente da nação e a todo o seu gabinete. Ele havia sido um morto de fome tocado pela varinha mágica da deusa Fortuna. Suas netas e netos ingressaram à nobreza européia. Se casaram com condes, marqueses e parentes de reis.

Quando a revolução de 1952 destronou Patiño e nacionalizou o estanho, era pouco o mineral que restava. Não mais que os restos de meio século de desaforada exploração a serviço do mercado mundial.

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Há mais de cem anos, o historiador Gabriel René Moreno descobriu que o povo boliviano era "celularmente incapaz". Ele havia posto na balança o cérebro indígena e o cérebro mestiço, e havia comprovado que pesavam entre cinco, sete e dez onças menos que o cérebro de raça branca. Passou o tempo, e o país que não existe segue doente de racismo. Mas o país que quer existir, onde a maioria indígena não tem vergonha de ser o que é, não cospe no espelho.

Essa Bolívia, farta de viver em função do progresso alheio, é o país de verdade. Sua história, ignorada, abunda em derrotas e traições, mas também em milagres desses que são capazes de fazer os depreciados quando deixam de depreciar-se a si mesmos e quando deixam de brigar entre eles.

Feitos assombrosos, de muito brio, estão ocorrendo, sem ir mais longe, nesses tempos que correm.

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No ano 2000, um caso único no mundo: o povo desprivatizou a água. A chamada "guerra da água" ocorreu em Cochabamba. Os camponeses marcharam desde os vales e bloquearam a cidade, e também a cidade se levantou. Lhes responderam com balas e gases, o governo decretou o estado de sítio. mas a rebelião coletiva continuou, impossível de ser parada, até que na investida final a água foi arrancada de mãos da empresa Bechtel e a gente recuperou a rega de seus corpos e de suas plantações. (A empresa Bechtel, com sede na Califórnia, recebe agora seu consolo do presidente Bush, que lhe dá de presente contratos milionários no Iraque.)

Há alguns meses, outra explosão popular, em toda a Bolívia, venceu nada menos que o Fundo Monetário Internacional. O Fundo vendeu cara a sua derrota, cobrou mais de trinta vidas assassinadas pelas chamadas forças da ordem, mas o povo cumpriu sua façanha. O governo não teve mais remédio a não ser anular o imposto aos salários, que o Fundo havia mandado aplicar. Agora, é a guerra do gás. A Bolívia contém enormes reservas de gás natural. Sánchez de Lozada havia chamado capitalização a sua privatização mal dissimulada, mas o país que quer existir acaba de demonstrar que não tem má memória. Outra vez a velha história de riqueza que se evapora em mãos alheias? "O gás é nosso direito", proclamavam nas manifestações. A gente exigia e seguirá exigindo que o gás se ponha a serviço da Bolívia, em lugar de que a Bolívia se submeta, uma vez mais, à ditadura de seu subsolo. O direito á autodeterminação, que tanto se invoca e tão pouco se respeita, começa por aí.

A desobediência popular fez perder um grande negócio a corporação Pacific LNG, integrada por Repsol, British Gas e Panamerican Gas, que soube ser sócia da empresa Enron, famosa por seus virtuosos costumes. Tudo indica que a corporação ficará com vontade de ganhar, como esperava, dez dólares por cada dólar de inversão. Por sua parte, o fugitivo Sánchez de Lozada perdeu a presidência. Seguramente não perdeu o sonho. Sobre a sua consciência pesa o crime de mais de oitenta manifestantes, mas esta não foi a sua primeira carnificina e este porta-bandeira da modernização não se atormenta por nada que não seja rentável. Ao fim e ao cabo, ele pensa e fala em inglês, mas não é o inglês de Shakespeare: é o de Bush.


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