Uma torre de Babel contra o neoliberalismo

Por Luciano Pereira 07/01/2006 às 22:09:20

No começo do século XXI, o Fórum Econômico Mundial completaria sua 15a edição. Apesar das recorrentes crises econômicas, os donos do dinheiro, que continuavam a acumular vitórias, se reuniriam mais uma vez em Davos, nos Alpes Suíços, para pregar a liberalização comercial. Mas naquele ano de 2001, surgia um inimigo declarado da globalização neoliberal defendida nos suntuosos hotéis da Suíça, era o Fórum Social Mundial, realizado na cidade de Porto Alegre, que aconteceria nos mesmos dias do encontro de Davos.

A idéia de fazer um encontro mundial das pessoas e movimentos sociais contrários às políticas representadas pelo Fórum Econômico Mundial partiu de um grupo de ONGs brasileiras, que se associou ao jornal francês Le Monde Diplomatique. Apesar da apreensão e da dúvida que paraivam sobre a viabilização do evento, pode-se dizer que o Fórum Social Mundial (FSM) foi um sucesso. Mais de 20.000 pessoas, de 117 países, foram até Porto Alegre sob o lema "um outro mundo é possível". Desde então, o FSM se estabeleceu como um contraponto a Davos, sempre que se fala nos endinheirados do Fórum Econômico Mundial (FEM), o "Povo de Porto Alegre" é lembrado obrigatoriamente.

Podemos medir o impacto do FSM pela mudança de discurso nas edições posteriores do FEM. Para não ver sua imagem corroída pelas críticas de Porto Alegre, os senhores de Davos se transformaram em empresários éticos e passaram a dar maior espaço em seus eventos para discussão de temas com coloração social e para as lideranças de ONGs, que se prestam a tal serviço. Ainda durante o 1o FSM, foi realizada uma teleconferência entre os representantes dos dois eventos, além da discussão não avançar por motivos óbvios, haja vista a incompatibilidade entre mundos tão opostos, o diálogo desagradou muitos ativistas em Porto Alegre, segundo eles, o objetivo declarado era credenciar e divulgar o recém-nascido FSM, mas isso poderia dar legitimidade ao FEM, já que eles se mostravam abertos ao diálogo.

Recentemente, surgiu uma bibliografia considerável sobre o tema, porém ainda há muita divergência entre os analistas e também entre os participantes. O que nos permite uma primeira aproximação ao nosso objeto: qualquer definição simples e direta do FSM é enganosa, se não, impossível.

O conflito de opiniões é inerente a qualquer tema político, mas no caso em questão, há um agravante, pois o FSM não faz parte da política convencional, por isso, o fenômeno tende a escapar ao nosso entendimento, pois ele não se explica a partir de nossas categorias tradicionais de pensamento. Quem insistir em analisar o Fórum nesses termos acabará por desacreditá-lo e não verá nele uma novidade histórica.

O FSM é um fenômeno desconcertante, ele nega claramente o modelo da globalização neoliberal e afirma que é possível uma sociedade justa, que respeite as diferenças e seja ecologicamente viável; no entanto, não há nenhuma definição quanto aos meios para se atingir esse outro mundo possível, tampouco é claro como será a produção e a distribuição de riquezas nesse novo mundo.

Diferenças em relação à esquerda tradicional

Para facilitar nossa compreensão, vamos compará-lo ao que, nos últimos 150 anos, se chamou de esquerda e, mais recentemente, esquerda tradicional. Segundo o historiador Immanuel Wallerstein, a característica fundamental dessa esquerda é dada pela "estratégia de dois passos", isto é, primeiro se controla o Estado e, depois, se muda o mundo. O controle do Estado como meio para a transformação da organização social foi o objetivo tanto de movimentos socialistas, que visavam mudar as relações de produção, quanto de movimentos anticolonias, que visavam a libertação nacional face às forças do imperialismo.

A mesma estratégia é usada tanto por reformistas que se submetem às regras da democracia representativa para obter a maioria dos votos populares, condição para se tornar governo, como também pelos movimentos revolucionários que tomam o poder por meio de um confronto armado contra as forças estatais (exército e polícia).

A história ensina que os ideais de justiça e emancipação, valores políticos que mobilizaram operários e camponeses, reverteram em seu contrário, pois as lideranças desses movimentos de esquerda, assim que tomaram o Estado, se transformaram em uma nova elite dominante, por isso, a maioria dos movimentos presentes no FSM não segue a "estratégia de dois passos".

Os partidos e sindicatos da esquerda tradicional tem uma estrutura hierarquizada, que opera com relações verticais de poder em forma piramidal, na qual o topo detem o controle político sobre a base. Ainda que não sejam todos, os movimentos do Fórum buscam por relações horizontais, nas quais não há separação entre dirigentes e subordinados. Mas à frente, veremos que o FSM recebe várias críticas quanto a isso, pois a horizontalidade é mais um ideal a ser atingido do que prática corrente entre e nos movimentos do Fórum.

O FSM não tem ideologia clara, ele não se define como social-democrata, comunista ou anarquista. A ausência de definição ideológica foi um expediente utilizado pelo Fórum para atrair toda gama de movimentos críticos à globalização neoliberal, uma definição rígida poderia afastar muitos deles. Essa ausência de definição é uma característica marcante do FSM e está presente em outros momentos, por exemplo, o FSM não possui manifesto, programa político, ou uma carta de intenções, nem mesmo uma declaração final é lançada no término do evento.

Diferentemente dos movimentos políticos anti-sistêmicos que lideraram a esquerda até os anos 90, o FSM não tem uma utopia clássica, ou seja, um corpo de idéias sobre como seria uma futura ordem social. Até mesmo por força das condições históricas, os novos movimentos sociais são norteados por uma utopia do aqui e agora, ou seja, cabe melhorar a vida e lutar por um mundo mais digno no presente, ao invés de estratégias que buscam resultado num futuro longínquo. Trata-se de metamorfosear os ideais coletivos em prática cotidiana.

Toda ação política da utopia do aqui e agora é perpassada por um elemento comum, a desmercantilização da vida. Quando passamos a pagar por algo que anteriormente tínhamos livre acesso, dizemos que aquele bem foi mercantilizado, isto é, tornou-se uma mercadoria, que para ser obtida sempre é mediada pelo dinheiro.

Atualmente, a lógica do capitalismo que é converter tudo em mercadoria atingiu seu ápice. Desde a água que de bem público pode ser privatizada, até uma festa de aniversário infantil que não é mais organizada pela família, pois agora as classes com poder aquisitivo contratam um buffet que vende a festa. Se a mercantilização é um processo presente em todas as esferas da vida, a desmercantilização dos novos movimentos sociais abarca setores tão diferentes como os softwares livres e as ações de camponeses contra os alimentos geneticamente modificados.

Disputa acerca dos objetivos

Alguns acham que a única e melhor função que o FSM pode ter é de um espaço de articulação dos movimentos sociais e de construção de alternativas à globalização neoliberal, onde mobilizações locais possam trocar experiências com organizações globais. O maior defensor dessa vertente é Chico Whitaker, membro do Comitê de Organização, para ele o FSM não deve se tornar uma instituição, pois a razão de seu sucesso é sua estrutura descentralizada, não hierárquica, na qual os movimentos sociais e as ONGs criam redes e se fortalecem nelas.

Os elementos que a esquerda tradicional qualifica como fraqueza política, são vistos como a força do FSM, de sua capacidade de aglutinação e de flexibilidade. Os membros do Secretariado Internacional e do Comitê de Organização, as duas instâncias burocráticas do FSM, seriam facilitadores para as trocas de experiências entre os movimentos e não dirigentes do processo.

No outro extremo, Emir Sader aposta na elaboração de uma pauta comum de ação, só assim se poderia construir a globalização contra-hegemônica, ou seja, se há uma hegemonia, o conjunto de idéias, valores e políticas neoliberais, a contra-hegemonia teria que criar um campo oposto capaz de lutar contra seu inimigo. Para tal, seria preciso unificar o discurso, estabelecer metas comuns e criar ações efetivas, Sader dá como exemplo o comércio solidário entre Venezuela e Cuba, que poderia ser potencializado pelo FSM e adotado por mais países. Na falta de resultados práticos, as energias investidas no Fórum podem se dispersar. A estrutura frouxa foi útil no começo, agora ela pode virar impedimento para a concretização do outro mundo possível.

Para fazer com que o ânimo utópico presente nos encontros se enraíze de modo a fortalecer a globalização contra-hegemônica, Boaventura de Souza Santos, propõem uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, ou seja, uma instituição universitária direcionada para auto-educação dos ativistas com valores opostos aos da ciência ocidental moderna. As universidades convencionais formam profissionais para o desenvolvimento do capitalismo. A Universidade Popular proporcionaria o conhecimento da já existente globalização alternativa, ou seja, das experiências políticas e econômicas de democracia direta e de cooperativas.

De uma forma ou de outra, todos esses autores supervalorizam o FSM. Os eventos são apontados como o elemento mais importante de globalização contra-hegemônica e, por vezes, o Fórum é apresentado como um todo maior do movimento antiglobalização e não apenas parte dele.

A ainda curta história do Fórum já demonstra um crescimento vertiginoso, os encontros mundiais de ramificaram em encontros continentais, nacionais e regionais, por exemplo, o Fórum Continental Europeu, o Fórum Pan-Amazônico; além dessas ramificações, há uma diversificação em encontros temáticos, por exemplo, o Fórum da Questão Palestina e o Fórum Social Mundial das Migrações, na Espanha. No entanto, o Fórum ainda não adquiriu a dimensão para assumir um papel central, pois embora os movimentos se alimentem das trocas ocorridas no FSM, eles possuem uma trajetória independente.

Movimento antiglobalização

Se esse é um debate interno do FSM, há análises de outros movimentos que apontam com contundência outros limites. São críticas importantes pois os próprios organizadores e animadores do FSM se dizem continuadores destes movimentos, o principal deles é o movimento antiglobalização, na verdade, um "movimento de movimentos", tamanha sua pluralidade. Aqui vamos nos limitar à sua franja mais radical, isto é, aos anticapitalistas. Os anticapitalistas são a parte do movimento antiglobalização contrários tanto a economia capitalista, quanto sua face política, o Estado e democracia representativa, é por isso que, além de combater as corporações multinacionais, eles pregam o voto nulo em todas as eleições. Trata-se de uma nova geração que se organizou depois do levante zapatista, em Chiapas, em 1994. Animados pelas novas formas do fazer político dos índios mexicanos divulgadas pelos comunicados - textos distribuídos pela internet - do Subcomandante Marcos.

Foi o movimento antiglobalização, no final dos anos 90, que criou esse novo modo de fazer política, que foi apropriado pelas organizações do Fórum. Uma novidade forjada na prática contra as reuniões dos organismos multilaterais. Esse movimento ganha repercussão mundial em Seattle, em novembro de 1999, quando, por meio da ação direta, conseguiu por fim a Conferência da Organização Mundial do Comércio, o que passou para a história como a "Batalha de Seattle". No ano de 2000, duas reuniões do Fundo Monetário Internacional foram interrompidas com bloqueios de ruas em Washington e Praga. Simultaneamente, centenas de cidade mundo afora também ocupavam as ruas, pois nestas datas eram marcados os Dias de Ação Global contra o Capitalismo.

Pois bem, o que disseram os mentores do FSM? O movimento antiglobalização é uma grande novidade e elegeu os inimigos certos: as corporações transnacionais, as instituições multilaterais e os países do G8, pois são eles os principais agentes da economia mundial contemporânea. Ele cumpria muito bem sua função de protestar e atrair a opinião pública mundial, no entanto, é necessário fazer propostas. De forma que o FSM se coloca como uma evolução em relação às manifestações. Vejamos, então, o que diz o outro lado.

Críticas anticapitalistas

Em linhas gerais, eles dividem o Fórum em duas tendências: uma coexistência entre a esquerda tradicional e os movimentos autônomos, entre o velho e o novo. Como vimos, a esquerda tradicional é hierárquica e pretende conquistar o poder, a nova esquerda quer construir alternativas desde baixo que não passem pela tomada de poder. O risco é a esquerda tradicional se apropriar do FSM para cooptar aqueles novos movimentos sociais.

A edição de 2003 é o caso mais paradigmático. A presença de lideranças como Lula, já eleito presidente e de seu colega venezuelano Hugo Chávez colocou sob suspeita o FSM. Ainda como agravante, a cobertura da mídia, tanto a corporativa, quanto a independente, mostra apenas personalidades, sejam políticos, intelectuais ou escritores. Assim, fica a imagem de um espetáculo realizado por homens do poder e por estrelas do mundo acadêmico, de um lado, e uma multidão de espectadores, de outro.

Ora, acontece que essa multidão está dividida em centenas de oficinas. As oficinas são atividades propostas por ONGs e movimentos sociais e fazem parte da programação oficial do Fórum. Essa é a parte auto-gerida do Fórum, que faz dele um laboratório mundial do que há de mais avançado na política contemporânea, onde tudo é discutido em todas as línguas: uma torre de babel contra o neoliberalimo.

Mas, é ainda o Comitê de Organização que controla o cronograma e o lugares das oficinas, por exemplo, também em 2003, um conjunto de oficinas com caráter radical e ao mesmo tempo propositivo chamado "A vida após o capitalismo", organizado pelo coletivo editorial da revista norte-americana Z Magazine, foi prejudicado pela falta de espaço e desorganização da agenda oficial. Além disso, as atividades propostas pela organização do FSM são pagas pelo próprio FSM, enquanto as atividades auto-geridas não recebem financiamento. Por isso, que Hebe de Bonafini, pertencente às Mães da Praça de Maio, divide o fórum em três classes: a organização, os participantes oficiais e a "base". A própria organização reconhece essas críticas, em sua defesa vale dizer que, ano a ano, o espaço para as oficinas auto-geridas é maior.

Dentro de todo espectro político presente no FSM, as maiores divergências se dão entre os anticapitalistas e ONGs, pois muitas, juntamente com as utopias clássicas, perderam qualquer ímpeto de imaginar uma vida além do capitalismo, para parafrasear as oficinas já citadas. Pelo contrário, a utopia do aqui e agora não perde de vista um horizonte livre da lógica destrutiva do dinheiro.

Desde o 11 de setembro, o mundo entrou na era do embate entre o terrorismo e a extrema direita mundial encabeçada por Bush, o movimento por um outro mundo possível perdeu um pouco o fôlego, as manifestações e a criatividade se amainaram. O Fórum tem muitos méritos, mas, até agora, mesmo seus números crescentes não ameaçaram a globalização neoliberal.

Luciano Pereira
Mestrando em Filosofia pela USP

Números do FSM (Box 1)

FSM 2001

Participantes: 20.000
Oficinas: 420

FSM 2002

Participantes: 50.000
Oficinas: 622

FSM 2003

Participantes: 100.000
Oficinas: 1.286

FSM 2004

Participantes: 74.126 (Índia)
Oficinas: 1.203 e 35 eventos de grande porte autogeridos

FSM 2005

Participantes: 155.000
Oficinas: 2.500

Próximos eventos: (Box 2)

O FSM de 2006 já é chamado de "Fórum Policêntrico", pois serão três eventos simultâneos, divididos em três cidades, dos três continentes do Terceiro Mundo: Karachi, no Paquistão (Ásia), Caracas, na Venezuela (América Latina) e Bamako, no Mali (África).

Fórum Social Europeu, em abril de 2006, Atenas, Grécia.

Em 2007, a edição mundial se concentra novamente em um só local, desta vez será em um país da África, ainda não definido.

Mais informações: www.forumsocialmundial.org.br


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